Açucena. (1)

Eu o chamei de Açucena. Talvez o mais bonito fosse Sérgio Anunciação de Carvalho, mas não era bem assim que as coisas eram quando ele era menino. 

Na verdade, o mais natural seria ‘serginho’, afinal, magrelo, vivia correndo pela rua para cima e para baixo, descalço, volta e meia brigando com um ou outro colega aqui e acolá (mesmo quase sempre apanhando), e tinha também o fato de uma certa introspecção inexplicável, assim, do nada... Mas isso é assunto para ser explicado um pouco mais adiante. 


Mas a história do apelido surgiu na 4ª série. Papo vai, aula vem, Sérgio achou de se apaixonar por Sussu, a menina da sala que era a líder da panelinha mais popular da 4ª D. 


Papo vem, aula vai, Sérgio nunca foi popular. Deixa eu explicar isso a vocês: Quando a gente vem com ‘senso crítico’ de fábrica as coisas nunca são fáceis. 


Mas crianças de 9 para 10 anos não sabem disso, aliás, nem as de 11, 12, 13... Ninguém explica para uma criança de 9 anos que o fato dela dar opinião sobre quase tudo é sinônimo de ser odiado por boa parte das outras, e talvez ninguém deva falar mesmo, talvez o erro não esteja nisso, e sim no contrário... Mas vamos em frente. 


Lá pelo meio do ano, o magrelo que dava opinião em tudo começou a se dividir entre os meninos do pique e uma tentativa desastrosa de se enturmar com Sussu. De tal forma que numa daquelas tardes, talvez em junho, uma semana ou duas antes das férias de meio de ano (a memória não é o meu forte), no refeitório, o menino resolveu entregar a ela uma cartinha de amor. 


Ninguém nunca vai conseguir explicar o real motivo que faz a gente sofrer traumas quando criança, e ninguém nunca vai conseguir evitar totalmente que alguém sofra. O fato é que Sussu estava cercada por 3 outras meninas, quando Sérgio entregou aquela folha de caderno dobrada em 16 partes, com um coração na frente, ao lado dos dizeres ‘para Sussu’. 


Quando Suelem abriu, era assim que estava escrito: 


“Açucena, açucena, morena, para flor mais bonita, quero escrever esse poema. 

Sussu, quero namorar com tu 

Diga sim, eu te amo.” 


O versinho era até bonitinho, autoral, em um concurso teria uma nota 3, mas quem disse que crianças de 9 anos se interessam por isso? Um barril de pólvora não precisa de uma grande chama para explodir, na verdade, basta um pouco de vontade e uma grande bagunça está armada. 


O Bilhete passou por 4 mãos, depois por mais 2, 3, e depois ganhou vida própria. No final da aula, Serginho havia se tornado Açucena. 


Ele, obviamente, ficou bem puto no começo. Entenda-se por começo os 3 ou 4 primeiros anos. Mudou de escola, mas o apelido foi atrás. Quando chegou ao ensino médio, cansado de fugir, começou a se conformar com a alcunha. 


Quanto ao romance, ele seguiu apaixonado por mais uns 3 ou 4 anos, nada que o primeiro beijo não ajudasse a esquecer. Do primeiro beijo em Natália, ao segundo em Márcia, depois o terceiro em... bem... do terceiro em diante os nomes começaram a não ser mais tão importantes.  


Sobre Açucena, em determinado momento Sérgio passou a gostar do apelido. Um homem com nome de flor era para ele uma antítese, um contraste que falava um pouco sobre a própria personalidade em luta, em formação. Era como se entre o preto e o branco dos seus próprios conflitos, ele houvesse encontrado o cinza, o ‘açucena’ de Sérgio, era marca da junção do seu caos interior. 

 

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